simbolos das monumentos religiosos

Turismo da fé cresce no RS, mas intolerância desafia liberdade religiosa

July 16, 20255 min read

Iniciativas religiosas ganham espaço, visibilidade política e ampliam movimentação turística e econômica - mas nem todas as crenças recebem o mesmo apoio

No mesmo estado onde foi inaugurado um Cristo Protetor e tramita a construção de uma “réplica” da Arca de Noé, o lançamento de um santuário destinado a Lúcifer não ocorreu. A um mês da data que marcaria um ano de sua inauguração, prevista para 13 de agosto de 2024, os autores da iniciativa seguem sem resolução do caso.

Em abril deste ano ocorreu a inauguração oficial do Cristo Protetor, em Encantado, e consolidou um novo marco para o turismo no Rio Grande do Sul, atraindo olhares e investimentos para o Vale do Taquari. Na ocasião, diversas autoridades e parlamentares gaúchos, incluindo o governador Eduardo Leite, celebraram o monumento como um potencial alavancador da economia local. 

Em Roca Sales, a Arca de Noé, projeto idealizado pela organização Associação Amigos Reconstruindo Roca Sales (AARRS), também pretende movimentar o turismo através de um roteiro religioso que ligue as cidades. Já em Gravataí, a inauguração de uma estátua em homenagem a Lúcifer foi impedida pela Prefeitura da cidade e o espaço segue sem alvará até hoje.

Em todos os casos, o investimento para a criação das obras foi privado – exceto em Encantado, que contou com cerca de R$ 8 milhões em recursos públicos.

Um novo marco para o turismo religioso

Com 43,5 metros de altura, o Cristo Protetor de Encantado se destaca na paisagem do Morro das Antenas. A inauguração oficial contou com a presença do governador Eduardo Leite, que mencionou a obra como representação da "força de Deus" e um impulso para a região se tornar um pólo de turismo religioso. 

O projeto envolveu investimentos comunitários, através da Associação Amigos de Cristo de Encantado (AACE) para a construção da estátua, R$ 4 milhões do Governo do Estado do Rio Grande do Sul para pavimentação da estrada que liga a cidade ao monumento, além de R$ 3,6 milhões para outras obras de infraestrutura – através de uma emenda ao Orçamento da União, apresentada pelo deputado federal Luiz Carlos Busato (União Brasil) ao Ministério do Turismo.

Em entrevista, o deputado federal Carlos Busato, que esteve presente na inauguração do Cristo Protetor, falou sobre seu envolvimento ativo na captação de recursos para o projeto. Para o parlamentar, que atuou na viabilização de verbas para infraestrutura pública do projeto, o impacto é visível.

"É só olhar Encantado antes da estátua e depois da estátua o quanto tem movimentado de turistas na região", afirmou o deputado.

O presidente da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, o deputado estadual Pepe Vargas (PT), também presente na inauguração do monumento, enfatizou o potencial transformador do Cristo Protetor para o turismo regional e também o papel do Estado no fomento ao setor.

Em entrevista, ele falou sobre o contraste entre o fomento ao turismo cristão e os casos de intolerância contra religiões não-cristãs e de matriz africana, reforçando o princípio constitucional da laicidade do Estado. Para o parlamentar, se há potencial turístico, deve ser incentivado independentemente da religião.

“Combater a intolerância religiosa é uma obrigação do Poder Público. Isso é inegociável, com ou sem envolvimento do turismo religioso. O Estado não pode privilegiar apenas uma fé. Isso fere os princípios democráticos", completou o presidente.

Realidade x teoria

Em teoria, a liberdade religiosa, garantida através do Artigo 5º da Constituição, deveria garantir que todas iniciativas religiosas tivessem a mesma oportunidade de se concretizarem. No entanto, os fatos e os dados apontam para um aumento expressivo da intolerância religiosa, levantando discussões sobre a relação do Estado com as diversas manifestações de fé.

Segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), em 2024 foram registradas 2.472 denúncias de casos de  intolerância religiosa, através do Disque 100. Ainda, conforme o levantamento da pasta, os religiosos que mais sofrem com essa violência pertencem às religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé, sendo que em 1.842 denúncias não houve indicação de religião.

A assimetria entre as crenças que conseguem consolidar projetos turísticos e aquelas que enfrentam resistência do poder público pode ser explicada por fatores históricos e culturais. Segundo o antropólogo Emerson Giumbelli, professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em religião e espaço público, há um padrão consolidado no Brasil: “A grande maioria das situações que se apresentam como 'turismo religioso' tem vínculos com o catolicismo. Ou seja, não tem favorecido o reconhecimento da diversidade religiosa no Brasil”, explica o professor.

Para o pesquisador, embora projetos como o Cristo de Encantado sejam inspirados por motivações turísticas e não necessariamente institucionais, ainda assim se assentam sobre referências cristãs dominantes. “Infelizmente, não é raro que iniciativas ligadas a religiões não cristãs tenham que recorrer a assessorias jurídicas para fazer valer suas reivindicações”, completa.

Em agosto de 2024, a tentativa de inaugurar uma estátua de Lúcifer, em um terreno particular, desencadeou uma série de medidas administrativas por parte da Prefeitura de Gravataí, que resultaram na interdição do local. Para o proprietário e autor da iniciativa, Mestre Lukas, da Nova Ordem de Lúcifer na Terra (N.O.L.T.), o impedimento se trata de um caso evidente de perseguição, que contrasta com o apoio que iniciativas cristãs costumam receber do Poder Público.

“Todos os documentos que nos pediram, entregamos. Mas foi evidente que o rito comum não foi seguido. A cada momento nos faziam novas solicitações que fugiam do previsto em lei. Agora, quase um ano depois, seguimos lutando na Justiça para poder cultivar a nossa fé, em nosso espaço", explicou.

Apoio na luta religiosa

A crescente preocupação com o avanço da intolerância motivou, no final de junho deste ano, uma audiência entre lideranças de religiões de matriz africana e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ/RS). O encontro, solicitado pela deputada estadual Luciana Genro, contou com a presença do presidente do TJ/RS, desembargador Alberto Delgado Neto, e outros magistrados, além de representantes de diferentes terreiros. Entre eles, estava Mestre Lukas, que relatou pessoalmente os impactos da perseguição religiosa vivida no município.

Durante a reunião, o Judiciário se comprometeu a incluir o tema em ações de formação para magistrados e em eventos institucionais, como forma de ampliar a compreensão sobre os direitos das minorias religiosas e combater a desinformação que alimenta o preconceito. No entanto, nenhuma ação concreta foi viabilizada ainda.

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